Muito tem
se falado nos últimos anos sobre a mercantilização da educação superior no
Brasil, resultante, segundo Morais, da devastação intelectual e dos regimes
discricionários que só criaram até agora uma pseudodemocracia (MORAIS, 2011, p.
24). Essa mercantilização, segundo o autor apenas citado, seria uma espécie de nova
barbárie, uma vez que despreza por completo o mais precioso capital humano,
a inteligência (Ibid.,p. 30).
1. A
mercantilização da educação
Porém,
quando falamos de "mercantilização da educação” no Brasil não devemos
pensar apenas naquelas "faculóides” que oferecem cursos a R$ 1,99, sem se
importar com o futuro que estão preparando para o país. Esse tipo de
instituição de ensino superior (IES) é um mero "supermercado de diplomas”
(Ibid., p. 70) que vende, no senso mais estrito da palavra, certificados
e históricos escolares, e se mantêm funcionando porque as disposições legais
que regema educaçãosuperior no Brasil não são cumpridas e essas instituições
não são seriamente fiscalizadas.
A
mercantilização da educação superior pode acontecer também em instituições que,
se declarando sérias, vão, aos poucos, deixando-se seduzir pelos atrativos do
mercado. Pressionadas pela lei da concorrência, essas instituições deixam de
lado os objetivos da missão e a ética e terminam por ceder às imposições do
mercado. E isso acontece porque os atuais discursos e práticas ideológicas
neoliberais permeiam tudo, inclusive ajudando a dissimular a realidade:
A
ideologia caracteriza-se por dissimular a realidade, apresentando como
"naturais” elementos que na verdade são determinados pelas relações
econômicas de produção, por interesses da classe economicamente dominante
[...]. O discurso liberal permeia, entre nós, as propostas oficiais e muitas
das concepções dos próprios educadores [...]. Essa tendência expressa uma visão
da instituição escolar que chamaríamos de otimista e ingênua. Ela a vê como
algo fora da dinâmica social, como impulsionadora desta dinâmica e acredita
que, sendo espaço privilegiado de transmissão de cultura, a escola "dá o
tom” à sociedade (RIOS, 2007, p. 35-36).
Tem razão
Rios, uma vez que quem "dá o tom” é a visão neoliberal que tem no mercado
o seu foco. Tudo vira mercadoria a ser vendida e negociada, inclusive a
educação. E neste contexto as decisões não ficam por conta dos que fazem e dos
que agem. Elas são tomadas pelos que investem:
[...] os
empregados, os fornecedores e os porta-vozes da comunidade não tem voz nas
decisões que os investidores podem tomar; e que os verdadeiros tomadores de
decisão, as "pessoas que investem”, têm o direito de descartar, de
declarar irrelevante e inválido qualquer postulado que os demais possam fazer
sobre a maneira como elas dirigem a companhia (BAUMAN, 1999, p. 13).
E de que
maneira as IES, inclusive as públicas, cedem a essa pressão do sistema
neoliberal? De várias maneiras, eu responderia. De um modo geral as IES continuam
com um discurso bonito, defendendo princípios éticos e de uma educação de
qualidade, voltada para a construção de um país justo e solidário. Na prática,
porém, a teoria é outra.
2. Os
passos da mercantilização da educação
O
primeiro passo, para a mercantilização neoliberal da educação superior, é a
instalação de uma burocracia infernal que emperra tudo e não deixa nada
funcionar.
[...] as
universidades como sistemas complexos não sobrevivem sem os expedientes
burocráticos. Naturalmente, há sistemas burocráticos inteligentes e que
beneficiam os que delas participam, tanto quanto há autênticos emaranhados
burocráticos que são estorvos ou, como já disse, barricadas de impedimento a
determinados acessos; isto para a produção de cargos, vantagens e explorações
espúrias (MORAIS, 2011, p. 61).
A
resultante da burocracia é a despersonalizaçãodas relações. Deixa de
existir a comunicação entre pessoas que têm rosto e passa a vigorar a relação
virtual. Os "donos” das empresas ou instituições (sejam elas públicas
ou privadas) nunca são vistos e encontrados. Os funcionários de mais alto nível
se comunicam mediante "chamados eletrônicos” e, com isso, escondem-se,
livram-se e livram os donos da instituição de qualquer responsabilidade de
discutir os problemas. As respostas são dadas eletronicamente, e os humanos que
estão lá na ponta, suportando o peso de tudo, são os únicos a aguentar toda a
carga explosiva das reclamações daqueles e daquelas que estão descontentes com
os serviços prestados. Portanto, não há aqui o encontro com a alteridade. A distância
é o produto final da burocratização. Falta proximidade, entendida como "um
espaço do qual a pessoa pode sentir-se chez soi, à vontade, um espaço no
qual raramente, se é que alguma vez, a gente se sente perdido, sem saber o que
dizer ou fazer” (BAUMAN, 1999, p. 20). No caso das IES acontece como nos
supermercados comuns: os que fazem a educação (estudantes, professores e
funcionários) só se encontram com "os caixas”, os quais foram treinados
para usar de esperteza, manha e de regras estranhas para "passar as
informações”, evitando o máximo que os problemas cheguem aos patrões (Ibid.,
p.20-25).
Dá-se,
assim, uma desintegração da comunhão, um verdadeiro isolamento corpóreo
ou, para usar uma expressão de Bauman, uma "incorporeidade” (Ibid.,
p. 25-28), no sentido que, devido a esse isolamento
[...] os
detentores do poder tornam-se realmente extraterritoriais, ainda que
corporeamente estejam "no lugar”. Seu poder está, real e integralmente,
não "fora deste mundo” – não do mundo físico no qual constroem suas casas
e escritórios supervigiados, eles próprios extraterritoriais, livres da
intromissão de vizinhos de uma comunidade local, inacessíveis a quem
quer que esteja (ao contrário deles) a ela confinado (BAUMAN, 1999, p. 26).
Decorrente
dessa incorporeidade é o adoecimentodaqueles e daquelas que são
obrigados a cumprir os "veredictos baixados no paraíso ciberespacial” (Ibid.,
p. 27), veredictos esses que não podem ser questionados, mesmo porque as
"autoridades” que emanam tais veredictos estão completamente distantes,
isoladas em espaços nos quais não podem ser alcançadas. O adoecimento, muitas
vezes, é visto pelos "donos do negócio” como irresponsabilidade e
preguiça, mas, na verdade os trabalhadores e trabalhadoras estão doentes, com
estresse ou síndrome de burnout:
Após se
dar, por certo tempo, o envolvimento afetivo com seu trabalho, o profissional
se desgasta de tal modo que, no extremo, desiste: o burnout o leva a não
agüentar mais manter o sentido de trabalhar que, em época passada, o susteve
(MORAIS, 2011, p. 91).
Essa
"desenergização afetiva que faz os educadores sentirem-se incapazes de
doar humanamente mais si mesmos”, incide na capacidade de raciocinar, de criar
e de produzir. Além disso, provoca sérios "bloqueios relacionais” que
levam os profissionais a atitudes negativas e até mesmo cínicas (Ibid.p.
92). Entre as atitudes negativas não se descarta a real possibilidade de ações
agressivas, através das quais as pessoas diminuídas em sua dignidade
tentam, mesmo que inconscientemente, reagir à humilhação do isolamento na qual
foram confinadas (BAUMAN, 1999, p. 29-31). No caso dos professores há uma dupla
humilhação:
Muitas
vezes o professor encontra também uma estrutura administrativa mediocremente
autoritária que, desdobrando-se para não perder a clientela, trata os docentes
como se lhes fizessem o imenso favor de mantê-los na instituição [...]. Muitas
vezes, os alunos não valorizam a pessoa culta que busca auxiliar-lhes no
desenvolvimento humano e profissional; outras tantas vezes, os administradores
institucionais tratam esse docente culto e esforçado apenas como umnecessitado
de emprego. Nesse caso também a maioria cognitiva desestabiliza o tônus
emocional do docente, causando-lhe confusão íntima e desgaste (MORAIS, 2011, p.
88-89).
No que
diz respeito às IES confessionais e/ou comunitárias o risco de sucatear a
educação, e de transformar a instituição de ensino em mero supermercado de
diplomas, cresce cada dia mais. Morais identificoua principal causa deste
risco. A citação é longa, mas vale a pena apresentá-la por inteiro:
Ocorre
que mesmo organizações comunitárias confessionais têm chamado, para sua
orientação interna, o que há de pior. São umas consultorias –elas mesmas
empresas atualmente muito rentáveis– que em nada podem auxiliar os meios
educacionais, uma vez que têm uma visão precariamente empresarial de educação e
ensino. Pestalozzi, Freinet, Paulo Freire e Dom Bosco nunca contratariam os
arautos do financismo consumista para opinarem sobre a educação. Como viajo muito
e muito observo, conheci várias faculdades e centros universitários que
visivelmente cresciam em respeitabilidade e projeção social, até que se
submeteram às "orientações” dessas consultorias e auditorias; logo em
seguida, tiveram maior conta bancária e menor prestígio institucional. Que as
indústrias e organizações comerciais chamem economistas para orientá-las; mas
que também as organizações educacionais e de ensino convoquem educadores,
cientistas sociais e pessoas competentes em gestão educacional para
mostrar-lhes caminhos que levem a um melhor futuro para o nosso país.
Infelizmente, sempre respeitadas algumas exceções, tenho visto organizações
acadêmicas comunitárias (e mesmo confessionais) entregues a administradores
que, pouco se importando com educação e ensino, vão, com o auxílio de alguns
disfarces ou mesmo abertamente, aceitando para esses meios universitários os
mais mesquinhos valores empresariais e de mercado (MORAIS, 2011, p. 101-102).
Burocratização,
despersonalização das relações, distância, desintegração da comunhão,
adoecimento e bloqueios relacionais terminam fazendo da IES um supermercado de
diplomas, uma vez que tudo isso "obstaculiza o envolvimento pessoal” dos
educadores. E quando isso acontece se desemboca "no prejuízo intelectual e
existencial às novas gerações, o que significa prejuízo social maior a curto,
médio e longo prazos” (MORAIS, 2011, p. 92-93).
3.
Caminhos para sair do "supermercado de diplomas”
Há algum
caminho para sair do "supermercado de diplomas”? Claro que sim, mas tudo
depende do modo como gestores e professores lidarão com essa situação. Antes de
tudo é preciso que se distinga gestor de administrador. Se houver
confusão entre as duas coisas a IES necessariamente se reduzirá a
"supermercado”:
O gestor
administrativo faz muito mais do que dar ordens impositivas, cuidar de custos e
lucros ou calcular investimentos. As palavras nucleares do discurso
administrativo são: controlar e cobrar. O objetivo das administrações se resume
a que haja funcionalidade sem conflitos. O gestor coordena e anima a totalidade
institucional, sendo indispensável que tenha competência para cuidar: a) da
gestão de resultados educacionais, para os indivíduos e para sua sociedade; b)
da gestão participativa, isto é, descentralizada, e com divisão de
responsabilidade; c) da gestão pedagógica, atenta à qualidade do ensino e da
educação; d) da gestão de pessoas, seja nas relações interpessoais internas,
seja nas relações com o meio social; e e) da gestão de serviços de apoio, bem
como de recursos físicos e financeiros [...]. Ora, em uma sociedade de grandes
interesses lucrativos, as faculdades, centros universitários e universidades
têm conhecido muito puros administradores do que gestores dotados de ideal
educativo (MORAIS, 2011, p. 37-38)
Em
segundo lugar é indispensável que as IES, vencendo todo "pragmatismo
empresarial” tratem cada um dos seus colaboradores como pessoa, ou seja,
como "unidade biológica enriquecida por todos os conteúdos íntimos e
relacionais dos seres humanos”. E isso deve ser dito porque são pouquíssimas as
"instituições muito sérias e conscientes, que tratam seus contingentes de
professores e alunos como pessoas” (Ibid., p. 71). De nada servem, diz
Morais, o "tartamudeio de slogans” se, na prática as pessoas são
tratadas de modo impessoal, distante, levando os colaboradores a se sentirem
desprezados e despojados de sua dignidade.
Além
disso, é necessário que a IES se veja comocentro de pensamento e de debate,
pois, se assim não for, terminará sendo "uma agência (mais complexa, embora)
de comercialização de habilitações e de diplomas” (MORAIS, 2011, p. 82). Muitas
vezes, para evitar gastos e para não possibilitar a formação de uma consciência
crítica, tende-se a baratear a educação, evitando investir em atividades que
discutem ideias e promovem valores. Assim cria-se um círculo vicioso no qual
uma coisa leva à outra. Desta forma a IES se reduz a uma organização acadêmica
voltada para "meros caçadores de diplomas, que ainda garantem algum status
ou promoções em empregos públicos” (Ibid., p. 105), mas não forma o
cidadão e a cidadã.
Quanto a
nós professores, é indispensável que não encenemos o nosso
trabalho, fingindo atuar seriamente, quando, na verdade e às vezes, apenas
dissimulamos e não queremos realizar nada de construtivo. Além disso, é
sumamente importante, especialmente quando ocupamos cargos de confiança dentro
da IES, que evitemos alianças e cumplicidades com os maus administradores.
Muitas vezes, para garantirmos a perpetuação da cadeira onde sentamos, somos
coniventes e silenciamos diante de situações desumanas e antiéticas:
Os
auxiliares de administração que ocupam cargos de confiança tanto podem ser
vítimas das decisões mais altas e autoritárias, quanto podem ser culpados de
uma aliança prazerosa com os maus administradores. E o chamado "efeito
cascata” se prolonga com coordenadores – também ora vitimados, ora propriamente
culpados, à semelhança dos médios oficiais nazistas que alegavam apenas cumprir
ordens (MORAIS, 2011, p. 97).
Por fim,
da parte de todos e de todas é sumamente indispensável pautar-se sempre por princípios
éticos fundantes. Quando as pessoas que fazem uma IES esquecem a ética, a
instituição não é reduzida a um "supermercado”, mas um mero "botequim
de esquina de rua”, onde se serve bebida adulterada e comida estragada. Numa
IES desse tipo,
O ideal
de formação do cidadão, homem emancipado e livre, através da razão,
transformou-se no "ideal” do homem submisso à ordem burguesa e aos seus
interesses, disposto a aceitar as regras do mercado e a instrumentalização do
ser humano a seu serviço. A razão, ela própria, conforme denunciam com muita
propriedade Adorno e Horkheimer, de instrumento de emancipação, tornou-se
instrumentalizada (GOERGEN, 2001, p. 61)
Finalmente,
para que não aconteça esse fim tão trágico é preciso que as IES cultivem dentro
delas, de forma prática e efetiva,a pastoralidade, entendida como
"espaço de cidadania”, no qual a educação seja uma ação política, isto é,
uma ação que esteja a serviço da libertação integral de todas as pessoas que
circulam dentro dela e ao redor dela (OLIVEIRA, 2011, p. 60-64). Cultivar a
pastoralidade é cultivar a ética, ou seja, a abertura ao "Outro”,
entendido como sujeito aberto a possibilidades sempre novas. E a ética de uma
IES se conhece pela sua capacidade de ser uma instituição humana e humanizante
(Ibid., p. 73-74).
Referências
bibliográficas
BAUMAN,
Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar,
1999.
GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. Polêmicas do nosso tempo.
Campinas: Autores Associados, 2001.
MORAIS, Regis de. Um abominável mundo novo? O ensino superior atual. São
Paulo: Paulus, 2011.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de. Universidade em pastoralidade. Ética nas
instituições de ensino superior. São Paulo: Loyola, 2011.
RIOS, Terezinha Azerêdo. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 2007,
17ª edição.
José
Lisboa Moreira de Oliveira